Professora superou obstáculos enraizados na sociedade brasileira para alcançar notoriedade na área de Matemática
Muitas vezes, a falta de poder aquisitivo é determinante para barrar uma pessoa do sonho de uma formação acadêmica de qualidade. Acrescente a essa realidade crescer na zona rural de uma cidade interiorana, ser negra e mulher nos anos 1960. Helenice Florentino tinha tudo para ser só mais uma brasileira impossibilitada de buscar sua maior aspiração. Só que, como ela mesma diz: “Tive que mostrar meu valor com trabalho para sobreviver a tudo isso.”
A menina cresceu com a família em uma fazenda em Araguari, na região do Triângulo Mineiro, e foi ter seu primeiro contato escolar no colégio mais próximo. A mãe, ao perceber a limitação local na área de educação, incentivou o marido a levar todos para a zona urbana da cidade – tudo pensando no melhor para seus filhos.
PAIXÃO PELA MATEMÁTICA
A mudança aconteceu e ela foi estudar em um dos melhores colégios de Araguari. Ali, conheceu a professora Jussara, a responsável por ‘brilhar seus olhos’. “A partir deste momento, eu me apaixonei pela disciplina e coloquei na cabeça que queria fazer matemática”, lembra.
A origem humilde, todavia, não cessava os obstáculos no caminho. Durante a infância, Helenice foi babá, ajudou a irmã na arte de costura, tudo para auxiliar no orçamento de casa. Parecia que era o destino a preparar para os desafios pelo horizonte à frente. Em 1983, uma nova barreira quebrada: o vestibular.
Helenice ingressou na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) para cursar Licenciatura em Ciências com Habilitação em Matemática. Durante a graduação, apostou em um estudo voltado para a área de Otimização de Rotas de Transporte, peça fundamental para pavimentar seu caminho na área acadêmica.
Pouco tempo depois, após insistência do irmão, rumou para São Carlos, onde fez mestrado no mesmo setor. Helenice era bolsista da CAPES na época e começou a ministrar disciplinas como docente, causando espanto nos demais estudantes. “Pouquíssimas pessoas da área de matemática tinham mestrado e doutorado. Então eles aceitavam quem estava fazendo mestrado para dar aulas como professora. Eu era bem nova, me confundiam com os alunos”, brinca.
Após terminar o mestrado, a jovem embarcou para São Paulo, onde deu início ao doutorado na USP, em 1992. Só que seu marido, André, que residia em Botucatu para trabalhar na SABESP, foi fundamental para a nova alteração de curso na vida da mineira.
Em uma visita a André, Helenice arriscou-se em ir ao câmpus de Botucatu da UNESP sem segundas intenções. Porém, uma surpresa agradável marcou a visita. “Fui muito bem recebida pelo professor Carlos Padovani, que me falou: ‘Nossa, nós temos uma vaga para você aqui. Venha para Botucatu. Seu marido mora aqui e será muito fácil para você. Peça transferência’”, detalha a professora.
A mudança para Botucatu foi benéfica para o futuro da trajetória de Helenice, mas reservou novos percalços. Ela precisou ajustar seu plano inicial de pesquisa para ser aprovado, pois era totalmente voltado para Engenharia. “Eles não aceitavam, porque aqui são áreas de Medicina, Biologia e Agronomia”. Só que o esforço para alterar o rumo do projeto rendeu bons frutos para ela e o nicho no Brasil.
“Hoje eu acho que foi maravilhosa essa mudança. Havia pouca gente, por exemplo, trabalhando na área mais biológica, na utilização de bioprocessos. Isso deu bastante visibilidade para o grupo no âmbito internacional e também com um projeto de dengue. E hoje posso dizer que estou muito bem estabelecida aqui em Botucatu”, comemora.
ENTRADA NA SBMAC
Na onda de desafios durante a formação acadêmica, veio também curiosamente sua filiação à Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada (SBMAC) em 1988. Durante seu mestrado em São Carlos, a então aluna resolveu ir ao Congresso Nacional de Matemática Aplicada e Computacional (CNMAC), mas era necessário se associar à entidade para embarcar. Desde então, são quase 35 anos de contribuições e responsabilidades para a área no país.
Nessas mais de três décadas, foram participações em eventos anuais até ser convidada para fazer parte do Conselho da SBMAC, primeiramente como Presidente do Comitê de Otimização Combinatória e, depois, como membro permanente do Comitê de Mulheres. A questão da inclusão é um tema que, na visão de Helenice, vem sendo priorizado pelas vozes mais influentes da entidade.
“Para se ter noção, eu fui presidente do Comitê de Otimização por 10 anos e nunca tive essa preocupação de fazer algum evento, de discutir a inclusão da mulher dentro desse meio. E eu vejo que as meninas fazem um trabalho maravilhoso, hoje, da valorização do trabalho feminino, da posição da mulher frente a toda problemática na universidade, na área de pesquisa. O apoio da SBMAC é primordial para justamente cobrirmos essa falha que tínhamos antes”, reforça a matemática.
MARCAS NA PELE
Além de combater o machismo, Helenice também precisou passar por situações lamentáveis e constrangedoras ao lidar com pessoas que se incomodavam com a cor de sua pele nas salas de aula. Durante o processo, a pesquisadora foi vítima de racismo por parte de estudantes e até de docentes.
“Houve situações em que entrei na sala de reuniões e a pessoa que entregava a pauta me falava: ‘Essa reunião não é para funcionário, é para docente’. Outra vez fui dar aula para professores e duas docentes se levantaram: ‘Não quero ter aula com essa negrinha’. Com essas palavras. Então, ser jovem, mulher e negra eram coisas não suportadas na sociedade”, lamenta.
O constrangimento era tamanho que Helenice chorava copiosamente após tais ataques, mas as palavras de sua mãe parecem ter martelado na cabeça insistentemente. “Ela me falava para não baixar a cabeça e seguir em frente. E uma coisa muito interessante é: ‘Mostre seu valor com seu valor, o seu trabalho, não bata boca com ninguém, porque só vai piorar sua vida’. E aprendi a fazer isso”, completa a pesquisadora.
Nos dias atuais, até pelo avanço das discussões sobre o tema, Helenice vê que a nova geração não precisa passar pelas situações que ela enfrentou no passado. Segundo a própria matemática, por vezes, ficou por um triz de rebater injúrias raciais, mas o receio de perder terreno na carreira falou mais alto.
“Hoje, as pessoas lutam por uma causa. Lá atrás, a gente se calava por uma causa, porque éramos uma minoria. Era normal ir em uma reunião e se deparar com: ‘Ah, você está fazendo serviço de preto’. Um sofrimento velado, mas hoje as pessoas expõem, e a internet auxiliou muito em relação a isso. Naquela época, você falava para seu amigo, seu colega de departamento. Hoje as pessoas vão para a internet para denunciar”, compara.
BAGAGEM
A professora é humilde ao abordar essas experiências infelizes. Reconhece, de fato, que poderia ter sido menos passiva e combatido o preconceito de forma incisiva. Porém, se o fizesse, será que teria alcançado um patamar tão elevado na área? Difícil saber, mas Helenice se sente no direito de aconselhar as próximas meninas que sonham em voos mais ousados.
“Engula menos sapos do que eu”, brinca de início. “Agora há todo um aporte para questões de racismo, de machismo e outros tipos de preconceito. A internet está aí para auxiliar. Por isso, vá em frente, porque nós, mulheres, negras, cientistas, docentes, amigas, esposas, somos fortes. A mulher consegue passar por tudo”, conclui Helenice.
Atenção: o legado está aí. E o trilho está muito mais viável do que nunca.
Confira o 11º episódio da série Memória SBMAC: